Aquele momento onde não se consegue dar cabo aos desejos e eles se tornam cada vez mais impertinentes. Afinal, qual a pessoa que dá o braço a torcer sobre um desejo fora do controle? Shame, segundo filme do artista plástico convertido a diretor Steve McQueen, não tem um protagonista humano e sim abstrato: o sexo. Pelo menos é o que fica claro na composição do personagem.
Vergonha, como aponta o nome em inglês, é coerente com o personagem. Sexo e vergonha na mesma frase soa familiar. Na antiguidade, o desejo sexual era visto com certa naturalidade. Atualmente, em alguns casos, a pessoa já nasce com o sentimento de culpa quando se trata do próprio desejo. É impróprio, é sujo. E quando a vontade ultrapassa as barreiras da razão?
O filme começa com um homem envolvido num lençol e com um semblante satisfeito. A lente do diretor britânico mostra, sem pudor (nu frontal é bastante explorado no decorrer da trama), a rotina diária do personagem, onde ele não é mais do que um coadjuvante de sua própria existência. Ele ouve as mensagens constantes na secretária eletrônica e se faz de surdo para todas elas. A vida dele é só uma, completamente fechada às próprias vontades e nada mais.
Brandon Sullivan, interpretado por Michael Fassbender (vencedor da Copa Volpi de Melhor Interpretação Masculina no Festival de Veneza de 2011), é um homem rico, bem sucedido e determinado. Exceto por uma coisa: o vício em sexo. Sua libido se mostra desenfreada em qualquer hora do dia. Marca encontros diários com prostitutas, se relaciona com qualquer mulher bonita que vê na rua, etc. Mas satisfazer seu desejo na vida real não é o suficiente: o computador, repleto de vídeos pornográficos, reflete ainda mais o poder que sua libido tem sobre seu corpo. Incontrolável até em seu local de trabalho. Ele canta as colegas ao seu redor e suas idas ao banheiro são regadas a masturbação.
A compulsão sexual de Brandon é representada pela falta de opiniões e preferências pessoais. Apesar de transmitir a imagem de um homem independente e seguro de suas vontades, o personagem acaba sendo retratado como uma marionete. Seu corpo é apenas um instrumento utilizado pelo vício, o que o torna um escravo de compulsão. Cansado de sua doença, ele não consegue se livrar dela. Ele só começa a cair na real sobre o seu problema com a chegada da “responsável pelas mensagens eletrônicas”, sua irmã aspirante a estrela, Sissy (Carey Mulligan).
Em uma das cenas, Brandon fica irritado quando a irmã entra no banheiro sem bater e o flagra se masturbando. Irritada, ela sai de casa. Mais do que nunca, ela percebe o quão sério é o problema dele. Ao contrário do irmão, ela não sente vergonha em relação ao próprio corpo e demonstra uma certa ternura, que também pode ser interpretada como carência. Ainda que seja frágil, ela decide ajudar o irmão a se curar de seu problema.
McQueen utiliza um interessante recurso em Shame: a decadência disfarçada de satisfação. Ele aplicou brilhantemente seus conhecimentos artísticos no tratamento das imagens do filme. Ele dá cor e vivacidade à decadência do corpo humano. Quem assiste tem a obrigação, pelo que parece, de olhar mais pro corpo do que pro rosto. A competente direção de fotografia de Sean Bobbit, também responsável por seu primeiro filme Hunger, soube mostrar o que há de mais bonito na cidade de Nova York, como por exemplo, as luzes da cidade na cena em que Brandon corre pelas ruas, na (falha) tentativa de esquecer seu desejo pelo sexo.
Outra cena interessante é a dificuldade que o “protagonista” tem de conversar sobre o amor, algo que ele desconhece completamente, já que não se apega a nenhuma mulher com quem se relaciona. Ao ir pra cama com sua colega de trabalho, algo o travou: o fato da mulher estar se entregando a ele porque realmente o achou interessante. Foi como se batesse o remorso de não conseguir corresponder àquele amor verdadeiro. E, logo em seguida, foi pra cama com uma desconhecida com uma facilidade única.
Shame tem a proeza de ser perturbador e, ao mesmo tempo, elegante. Vencedor do prêmio de Melhor Filme pelo Festival de Veneza de 2011, o filme também conta com uma trilha sonora excepcional, que merece ser comentada. A música chave do filme e que abre o mesmo (na cena do trem), “Brandon”, composta por Harry Escott, é ritmada e transmite muito bem o cotidiano do protagonista: extremamente dramática com seus violinos oscilantes, assim como o perfil do personagem. O renomado pianista canadense Glenn Gould tem quatro peças presentes na trilha, incluindo Prelude & Fugue No. 10 In E Minor, BWV 855: Prelude (Cravo Bem Temperado, de Bach, no piano) e Goldberg Variations; BWV 988: Aria (Variações Goldberg, de Bach). Não só composta de momentos clássicos, também estão presentes na trilha “Genius of Love” de Tom Tom Club, “Rapture”, do grupo Blondie e o clássico da Disco Music “I Want Your Love”, da banda americana Chic.
Por Felippe Alves
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